27.12.09

Se puder, sem medo



Se puder, sem medo
Oswaldo Montenegro

Deixa em cima desta mesa a foto que eu gostava
Pr'eu pensar que o teu sorriso envelheceu comigo
Deixa eu ter a tua mão mais uma vez na minha
Pra que eu fotografe assim meu verdadeiro abrigo
Deixa a luz do quarto acesa a porta entreaberta
O lençol amarrotado mesmo que vazio
Deixa a toalha na mesa e a comida pronta
Só na minha voz não mexa eu mesmo silencio
Deixa o coração falar o que eu calei um dia
Deixa a casa sem barulho achando que ainda é cedo
Deixa o nosso amor morrer sem graça e sem poesia
Deixa tudo como está e se puder, sem medo
Deixa tudo que lembrar eu finjo que esqueço
Deixa e quando não voltar eu finjo que não importa
Deixa eu ver se me recordo uma frase de efeito
Pra dizer te vendo ir fechando atrás da porta
Deixa o que não for urgente que eu ainda preciso
Deixa o meu olhar doente pousado na mesa
Deixa ali teu endereço qualquer coisa aviso
Deixa o que fingiu levar mas deixou de surpresa
Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo
Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande
Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo
Se o adeus demora a dor no coração se expande
Deixa o disco na vitrola pr'eu pensar que é festa
Deixa a gaveta trancada pr'eu não ver tua ausência
Deixa a minha insanidade é tudo que me resta
Deixa eu por à prova toda minha resistência
Deixa eu confessar meu medo do claro e do escuro
Deixa eu contar que era farsa minha voz tranqüila
Deixa pendurada a calça de brim desbotado
Que como esse nosso amor ao menor vento oscila
Deixa eu sonhar que você não tem nenhuma pressa
Deixa um último recado na casa vizinha
Deixa de sofisma e vamos ao que interessa
Deixa a dor que eu lhe causei agora é toda minha
Deixa tudo que eu não disse mas você sabia
Deixa o que você calou e eu tanto precisava
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia
Deixa tudo o que eu pedia mas pensei que dava

O guri e a galinha

Estou fazendo um retiro/fuga/pseudo-isolamento na casa de meus pais em Itaara.
Tipo "vivendo a minha vida" da maneira que ela se apresenta.
Aqui é um misto natureza-civilização ainda não muito bem definido.
Agora são 07:05 da manhã e estou acordado por diversos motivos. Alguns insetos não me deixaram dormir, o ventilador, no máximo, faz um barulho de turbina de avião (e eu odeio aviões), o vento do ventilador na minha cara era muito forte (dormi no quarto do meu irmão e ele prefere o ventilador no nível máximo) e deixava o lençol gelado, deu fome enquanto tentava dormir, quando peguei no sono meu irmão levantou pra ir ao banheiro (e nisso já era quase dia) e os passarinhos começaram a se mexer e cantar (tipo "vivendo suas vidas") e um vizinho toca música eletrônica bem alto. Noite chata, feia e boba.
Mas fora esse pequeno detalhe, não é tão ruim assim. Na cidade a gente fica um pouco preso no barulho dos carros e no cheiro de esgoto. No pó de cimento e na nostalgia de quando éramos crianças e nada disso era problema. Há uns 15 anos atrás eu jogava bola na rua, "gostava" das amiguinhas, invadia construções pra fazer aventuras malucas e perigosas (esse era um grande conflito existencial entre eu e minha mãe). Depois eu cresci um pouco e bebia e fumava e conversava com meus amigos na rua durante a madrugada. Mas sempre no cimento e no asfalto.
Mas juro. Juro. Durante todos esses vinte e seis anos de selva de pedra nunca tinha visto uma criança passear com uma galinha embaixo do braço.

22.12.09

Vivendo a minha vida ou o caso do não-sei-o-que-fazer-com-isso

Voltando ao mundo canino, lembro agora dos de rua.

Eles nascem em qualquer lata de lixo ou terreno baldio. Ou alguns nascem em uma casa e são cruelmente jogados na rua em sacolas plásticas. Uma grande percentagem dos sobreviventes andam pelas ruas defecando, urinando, latindo feito assassinos e revirando lixeiras. São os nossos vira-latas. Eu gostaria de ter uma experiência vira-lata. Os vira-latas são livres. Comem, bebem e dormem na medida do possível. Fazem sexo quase semanalmente. Têm amigos fiéis (os mendigos), tem inimigos mortais (alguns parceiros de espécie maiores que eles).
É uma aventura ser cachorro de rua.

Faço analogia ao que imagino ser o "vai viver tua vida" que me escreveram há alguns dias. Do tipo: Mind your own business! Quero cair na gandaia! Caia também! Mas longe de mim, claro.

Viver a Vida é nome de novela, não?

O meu viver a vida é normal.
Eu vivo. Como, bebo, durmo.
Tenho um pouco de saúde e tal.
Família massa, amigos legais.
Colegas tri gostosas.
Estudo jornalismo numa faculdade ótima.
Se fosse falar no sentido científico mais básico de descrever um ser vivo, estaria na fase do "cresce". Tipo vivendo a vida.
Claro que não com todo o glamour das vidas vividas na tal novela. Ela é uma tentativa nojenta de mostrar uma realidade mais nojenta ainda de uma parte bem pequena deste nosso Brasil varonil.
Mas fui aconselhado a viver a minha vida.
Mas eu pergunto: Quando foi que eu deixei de viver a minha vida?
Ninguém deixa de viver a vida. A não ser os que vivem a própria vida fingindo ser o que não são. O que não é o meu caso.
Uma das minhas virtudes é a sinceridade. Que começa comigo mesmo.
Eu nunca pretendi deixar de viver a minha vida. Eu queria acrescentar qualidade a ela.
Eu queria dar um novo ar para os meus pulmões. Eu queria viver a minha vida e ainda criar outra vida. As pessoas pensam que a gente precisa abdicar de viver quando vai se unir a outra pessoa.
A gente está sempre unido a uma pessoa. Sempre. Com sexo ou não, sempre. Nunca estamos sozinhos, seja para ser independente ou dependente. Isso não nos livra de relacionamentos íntimos, familiares, profissionais ou de amizade.

Eu gostaria muito é que a sinceridade fosse sempre recíproca em minhas relações.

Mas enquanto eu não souber tudo tim-tim-por-tim-tim vou continuar a "viver a minha vida", como os queridos vira-latas, já que é como me sinto devido ao fato de que a melhor parte do meu "viver a vida" me foi tirado injusta e arbitrariamente.


18.12.09

A vida se repete em diversas situações


Ele era apaixonado por Ela.
Ela não sabia viver sem Ele.
Se conheceram há muito tempo e de uma hora para outra acabaram se apaixonando. Era uma bela história de amor. Passaram meses e meses na felicidade mais suprema e imaginável. Comiam, dormiam, andavam, estudavam, trabalhavam juntos, pelo bem do ano mais feliz de suas vidas. Eles não sabiam qual era, só que estava próximo.
A vida foi pregando peças, jogando obstáculos e tentando fazer com que a magia toda acabasse. Duas ou três vezes saíram do rumo. Brigaram feio. A ausência de um ou de outro fez com que a coisa desandasse.
Mas quando se encontravam, tudo mudava.
O sangue ficava mais vermelho e o sol amarelo brilhante.
Enfim, o ano mais importante chegou. Ela engrenou na vida.
Ela queria levar seu amado pra fora, para longe. Para o Mundo.
Ele negaceou. Pensou, repensou e pensou de novo.
Acabou sendo convencido por seu grande amor.
- OK. Vamos. Eu vou junto. Quero ver o Mundo novamente. O Mundo só nosso.
Prepararam uma surpresa para suas famílias. No mês de outubro anunciaram que iam casar. Ele ia continuar sua vida noutro lugar até conseguir andar com as próprias pernas. Enquanto isso Ela aguentaria as pontas. Por amor, por amar. Então veio o limbo. O espaço entre o noivado e o casamento foi preenchido com o vazio.
Ela foi para longe treinar. Ele ficou esperando. Tudo era esperado: a saudade, o ciúme, o não-sexo. Eles se propuseram a passar por isso e depois seguir adiante.
Tudo ia bem até certo ponto. Ela conheceu pessoas novas, começou a ganhar bastante dinheiro e foi levando com a barriga. Mudou pra uma casa só dela, da irmã e da melhor amiga. Era o que o amor precisava para morrer. Ela mudou de amor. Passou a amar as amigas, os bares, o seu carro novo.
Um dia ela apareceu de surpresa e disse adeus. Praticamente na porta da igreja.

Ao analisar a campanha do Inter no Brasileirão 2009 lembrei dessa história.

Crônica massa do David Coimbra

Uma mulher dormindo no fusca

Uma mulher acabou com a nossa turma, uma vez. Éramos amigos de infância, saíamos todas as semanas, tínhamos um time de futsal. Bom time, bem entrosado, custava a perder. Afinal, nos conhecíamos desde os tempos do gude, do boco, do polícia-ladrão. Aos sábados, íamos jogar bola nas quadras do Dom Bosco, depois tomávamos Faixa Azul no armazém do Seu Zequinha, bem ali onde hoje é a borracharia do Brazinha, e só mais tarde é que íamos para a esbórnia.

Era sempre assim, e era bom.

Mas um dia um dos amigos começou a namorar com aquela mina. Não era bonita, mas também não era feia. Não era magra, tampouco gorda. Nem alta, nem baixa. Em tudo tratava-se de uma média.

Primeiro, ela passou a frequentar a última etapa do sábado, a finaleira, os bares da boemia. Era divertida, bebia bem, entrosou-se facilmente com o pessoal. Passadas algumas semanas, ela apareceu no fim do jogo e desceu conosco o morro do Alim Pedro até a sordidez do armazém do Seu Zequinha.

No princípio achamos estranho: bebíamos suados, de calção e camisa de time, esparramados nas cadeirinhas de metal, e só falávamos das nossas façanhas no jogo que havia terminado e das que planejávamos para a noite que ia começar. Aos poucos, porém, fomos nos acostumando com a presença dela, até porque ela parecia não se escandalizar com nenhuma das escatologias que dizíamos e ria das nossas piadas.

Uma tarde, enfim, ela chegou ao Dom Bosco num Fusca, o nosso amigo ao lado. Alguém brincou:

— Reforço pro time?

Ela riu:

— Só vou assistir.

Não assistiu. Ficou no Fusca, dormindo. Nos outros sábados, a mesma coisa. Ela chegava com o nosso amigo e não saía do Fusca. O Fusca permanecia estacionado à margem da quadra, ela no banco da frente, a cabeça jogada para trás, a nuca apoiada no encosto, a boca aberta, roncando. Por que ficava dormindo naquele Fusca? Tinha algum propósito premeditado? Sabia o que estava fazendo?

Decerto que sabia, porque a cada sábado o nosso amigo parecia mais constrangido. Só que, curiosamente, não se constrangia com ela; constrangia-se conosco. E, em vez de pedir que ela não fosse mais assistir aos jogos, desistiu ele de ir. Perdemos um eficiente ala pela direita.

Eles continuaram frequentando a turma nos bares da noite, só que ela aparecia sempre de mau humor, seu estado de espírito influenciava todo mundo, a mesa ficava tensa, as madrugadas terminavam em discussão. A turma se desfez. O time se desfez. Por causa de uma mulher.

As mulheres são assim, ou pelo menos algumas delas: se realizam quando conseguem fazer um homem desistir do que lhe é mais caro. É um troféu para elas. Uma realização. Uma prova do quanto elas são importantes.

Uma mulher acabou com os Beatles; uma mulher, ao acabar com Mike Tyson, acabou com o boxe internacional; uma acabou com a nossa turma; e agora outra está acabando com o golfe, ao acabar com o Tiger Woods. Cristo, por que as mulheres são assim???

*Publicado na Zero Hora de 16 de dezembro de 2009


Preciso de férias



Preciso de férias
Dessa dolorosa lembrança
De não ter ideias
Da enternidade da esperança

13.12.09

Adeus ano do mal

Os cachorrinhos que moram em apartamentos são felizes. Eles comem, bebem, ganham carinho dos donos. Não têm problemas. Não sabem que foram privados de viver uma vida em meio a Natureza. Grama, sol, mosca, passarinho. Eles simplesmente estão lá. Dormindo, comendo e latindo pra quem passa em frente a porta.

Eu gostaria muito de ter sido um cachorrinho de apartamento. Peludinho, cheiroso e babão. Não gostaria de ter sido apresentado à felicidade de poder voar, de amar, ser amado e fazer planos eternos. Uma igreja caiu sobre mim, um avião arrancou meu medo de altura e uma espada me feriu mortalmente o coração. Fui grande, dei grandes passos adiante. Fui pequeno e fraco ao ponto de caminhar o dobro de volta. Não aguentei. Não me aguentaram. Foram fracos, covardes e egoístas comigo. Foram incompetentes tanto quanto eu. Mas eu estava só no começo. No começo do começo.

Vai, dois mil e nove, e leva contigo todo esse terror que causaste na minha vida. E na vida de tantos outros que nem posso contar.

Vem, dois mil e dez.
Que sejas bom e construtivo desde teu primeiro segundo.

Eu mereço. E tantos outros que nem posso contar.