Eu tenho 29 anos de idade. E
levei esse tempo todo para conhecer o que é a sensação de impotência. Já tive
lá minhas aventuras pessoais trágicas (e eu pensei que esse termo tinha
magnitude finita), mas o que eu vivi e vi nessas últimas 20 horas me deu a
dimensão do infinito. Da tragédia infinita. Aprendi, hoje, de verdade, o que
são o medo, a tensão e a agonia.
Me tornei jornalista há pouco
tempo e, por um impulso (que deveria ter velado), embarquei num pesadelo que eu
jamais vou esquecer. Ao presenciar o incêndio que vitimou 233 pessoas, eu
estive numa dimensão que não recomendo ao meu mais vultuoso inimigo. Eram
centenas de pessoas desesperadas, sujas, feridas. Homens sem camisa abanando outros
que não conseguiam respirar. Mães e pais desesperados procurando os filhos em
meio a sapatos quebrados, cacos de vidro, madeiras queimadas e uma fumaça
traiçoeira que avisava lentamente sobre o horror coberto pelas paredes que
voluntários e bombeiros tentavam derrubar para salvar os demais espremidos
entre outros espremidos.
Amigos banhados de suor e
lágrimas abraçados. Choravam a perda dos queridos companheiros que deixaram a
vida dentro de um salão enfumaçado. Tão negras eram as manchas em seus corpos
quanto a aura que envolvia aquele sexto de quadra.
A quantidade de corpos jogados no
chão me chamou a atenção. Inocente, pensei ser aquele o lugar em que os feridos
estavam aguardando atendimento enquanto litros e litros de água jorravam dos
caminhões do Corpo de Bombeiros. Mal sabia eu que as pessoas deitadas na rampa
de um estacionamento recebiam o choro dos amigos, que imploravam para que daqueles
corpos, manchados de vermelho e preto, um sopro de ar saísse. Me deparei com a
linha de frente da guerra em que caí de paraquedas. A expressão de perplexidade
ainda não abandonou meu rosto.
Depois veio o dever às devas.
Recrutado para a redação do jornal Diário de Santa Maria, o qual sou
freelancer,corri, às 5h da manhã, para ajudar na cobertura, estruturada às
pressas, da maior catástrofe que a minha cidade querida já comportou. A
tristeza, o choro contido, o olhar marejado, a dificuldade de olhar no olho do
colega. Uma mistura de pavor e tristeza tomou conta daquele lugar que num
domingo teria uma equipe costumeiramente muito bem humorada. Esse plantão vai
ser eterno. Aos poucos a rotina da cobertura foi escondendo mais a tristeza.
Ela se manifestava aos poucos em lágrimas que corriam vez em quando pelos olhos
dos repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, editores e motoristas.
Era uma tristeza desumana. Vi
minha chefe e amiga chorar, vi minha irmã de coração aflita por notícias do
irmão. Por incontáveis vezes estufei o peito e suspirei para me manter forte.
Desci, fumei, bebi litros de água e café. Me entreguei ao falar com minha mãe
pelo telefone (mãe tem o direito e o poder de fazer o machões chorarem).
Contando pra ela isso que escrevi acima em versão reduzida, minhas lágrimas se
soltaram em litros. Solucei com o abraço silencioso que dei na minha chefe e
quase irmã Carolina. Ali, a gente se deu um tempo para ganhar um pouco de
fôlego e coragem para voltar lá para cima e encarar os telefonemas, as fotos,
as buscas por informação, os textos e o clima de união de uma redação de jornal
que jamais deveria estar tão cheia num domingo de verão com um céu azul
escancarado. Porém, sem o brilho que a dor da perda de tantas vidas nos roubou.