17.2.11

Sangue na boca

Eu tinha 12 anos quando matei a primeira pessoa.
Na época eu tinha medo das pessoas. Eu via sangue por todo lado.
No fundo, no fundo, quando eu deitava, ficava imaginando aquele sangue todo jorrando da cabeça do vizinho que ficava na espreita quando eu voltava da escola. Ele cuidava na janela e roubava todas as moedas que eu conseguia pedindo no caminho de casa.
Onde eu morava nunca teve lei. Aliás, teve. Tinha a lei do revólver.
Quem tinha, conseguia o que queria. Meu pai e minha mãe era da Igreja. Eu até ia. Mas sempre vi os sermões do padre como uma arma tão perigosa e poderosa quanto o trabucão do Zé (meu vizinho).
Um dia ele veio pegar minhas moedas. Eu nem tinha, na verdade. O que eu tinha na mochila era o cano do Adenor. Ele tava fugindo da polícia e cruzou por mim na entrada do beco. Disse: - baixinho, pega e esconde pra mim. Fiquei meio assim de pegar. Mas eu sabia que se não pegasse ele ia me bater depois, no mínimo. E foi muito bom ter pego. Quando o bundão do Zé não acreditou que eu não tinha moedas fez eu abrir a mochila. Passei a mão na benga, olhei pra ele e puxei o gatilho. O sangue jorrou da cabeça dele bem como eu tinha sonhado umas duzentas vezes.
Caiu um pouco de sangue na minha boca. Tava muito perto. Senti aquele gosto de caqui verde, ferrugem, seco. Lembrei dele por dias. Foi como se eu tivesse me afeiçoado pelo gosto e pela cor.
Meio que resolveu os meus problemas temporariamente.
Logo logo surgiram mais pessoas matáveis. O Adenor nunca mais procurou a arma (parece que mataram ele aquele dia) e ela ficou pra mim. Com aquelas quatro balas. Tinha só quatro furos pra fazer.
Num dia de inverno que fazia trinta e seis graus, eu matei um cachorro que parecia uma múmia. Todo escalavrado. Manco. Doente. Ele merecia morrer.
Depois eu matei o papagaio do vizinho. Ele era muito chato e não me deixava dormir no domingo de manhã. Fazia mais barulho que o pagode que começava às nove horas na laje em cima do meu quarto no barraco. Mirei da janela da sala. Acertei a cabeça. Jorrou sangue. Não como o cachorro. Mas jorrou sangue muito por que a cabeça sumiu. Só ficou aquele corpo verde no chão da gaiola que acabou ficando vermelho escuro.
Não matei nada durante seis anos. Deixei o cano escondido lá em baixo do guarda-roupa. Eu tinha resolvido meus problemas. Eu nem pensava que ia surgir um grande problema. Mas eu já tinha 18 anos. Meu pai acumulava dez de pinga. Minha mãe era tão crente que, às vezes, parecia que baixava um espírito mau nela. Dizem que ela tava cheirando cocaína.
Um domingo, desses de pagode na laje, eu acordei com uma gritaria estranha. Não era samba enredo. Ouvi uns gritos da minha mãe. Meu pai tava de pé na sala e minha mãe no chão gritando coisas que eu não conseguia entender. Eles tinham feita dessas muitas vezes nos últimos dias. Quase sempre meu pai descontava em mim. Por que minha mãe tava louca. Não adiantava bater, esmurrar e chutar. Ela nunca parava de gritar.
Eu olhei da porta do meu quarto. Lembrei da arma.
As duas últimas pessoas que matei foram meu pai e minha mãe.

16.2.11

depois que leu o que tinha escrito...

depois bem depois que leu o que tinha escrito ele pensou que poderia ter sido uma pessoa melhor durante a vida toda e que quase quase quase era tudo errado e que de nada da vida tinha feito gozo pleno como uma ejaculação precoce ou o efeito do lança perfume que já nem era mais tão bom assim de uma época pra cá e de uma época pra lá que iam os anos e ficavam mais escuras as pretensões de felicidade ou de deixar de cuspir propostas irrecusáveis a pessoas nem muito como as propostas jogadas em sua própria mania de ser como são assim assim como ele mesmo pensava que era grande coisa e no fundo era só um sapo oportunista e sugador de energias de pilhas enferrujadas e gastas pelo uso descabido da nobreza de ser ou pensar ser útil para alguma coisa inútil e a pilha gasta e o corpo morre como morre o sapo depois de ser picado e esmagado pela cobra que vive circulando nos melhores bares da cidade como se tocasse uma canção de ninar para bebezinhos que correspondem ao sentimento recíproco de afetividade efêmera que é tão tão tão rápida que quando vê já não é mais e quando vê é uma história mal contada sem início nem meio nem fim satisfatórios e depois bem depois que leu o que tinha escrito pensou que deveria ter sido aquela pessoa que se considerava preciosa e não pensar que preciosos são os outros

15.2.11

eco eco eco

sempre era como sempre e sempre do jeito mais escroto e do jeito de ser de um mendigo fedorento de um passado que ele mesmo queria apagar e torcer até sumir como aquela vontade de apertar até gritar e suar e estremecer de raiva e socar a face do espelho naquele dia que acordou de ressaca de cinco litros de vinho bebido em copos de vidro quebrados que cortavam a boca a cada gole e faziam o vinho tinto ficar mais tinto com o sangue e vomitar todos os pensamentos torpes e insanos daqueles dias em que era tudo daquele jeito bonito e feio ao mesmo tempo e era tudo tão tão tão divertido e acabou não sendo mais tão tão tão divertido assim de repente e foi sumindo com se fosse uma poça d'água ao sol de fevereiro sem que nenhum bloco passasse por cima na avenida e nem no salão do clube e sempre foi um pedido de socorro que ninguém ouviu porque não tinha ninguém lá mesmo nem uma mosca verde nem uma lagartixa porque não fazia sentido ter lagartixa se não tinha mosca e nem mosquito e nem bloco e nem marcha e nem confete só o eco eco eco ecoando de lá pra cá e dali pra lá e voltando como tudo volta e como tudo vai assim bem fácil e pouco moderno porque nem é mais moderno ser assim nem assado ou assar ou esperar assar ou comer logo cru porque cru pode queimar ou não fazer bem como comer frutas verdes sempre causa um efeito diferente depende da fruta e da pessoa e de quem espera e de quem vem e do que acontece quando a gente toma vinho tinto em copos de vidro quebrados e acorda querendo socar o espelho ou apertar até sumir ou tem só um pouco de saudade de quando tudo era legal e foi sumindo sumindo sumindo como aquela poça d'água que ficou no sol e não passou nenhum bloco de carnaval por cima na avenida como ficar dentro de casa o dia inteiro e só ouvir ouvir ouvir ouvir ouvir ir ir ir i i i ...

10.2.11

desses olhos

acordo com a sutileza das noites de nuvens bailarinas
deixo de sacar - lento - a lâmina do meu peito a cada segundo
que de segundo já não é mais.. é primeiro
aquela parte em que mutilava meu corpo a cada instante
jaz sob os escombros de uma guerra atômica
acordo com a sutileza das noites de nuvens bailarinas
desses olhos
desses cabelos e desenhos

*para Sara Tibola